A opção pela ignorância

Como havia desacreditado pesquisas sobre desmatamento e desemprego, Bolsonaro diz que não há fome no Brasil; nenhum governo toma decisões corretas ao escolher ignorar a realidade

Jair Bolsonaro

O Estado de S.Paulo 

Para ser eficiente, um governo precisa de informações de qualidade. É impossível que um presidente da República tenha domínio sobre todos os temas que lhe cabe tratar, mas um bom presidente é aquele que, antes de tomar decisões, especialmente sobre assuntos que desconhece, se esforça para se inteirar dos dados mais confiáveis. Se, contudo, um presidente escolhe deliberadamente ignorar as informações qualificadas a respeito dos problemas graves do País, baseando suas decisões no que seus seguidores dizem nas redes sociais em detrimento da opinião de especialistas e no trabalho de pesquisadores, o resultado é uma administração caótica – e nociva para a população. 

Quando o presidente Jair Bolsonaro diz, por exemplo, que “fome para valer não existe (no Brasil) da forma como é falado”, sinaliza que escolheu a ignorância. Abundam informações segundo as quais a fome não apenas existe “para valer” no Brasil, como atinge brasileiros na casa dos milhões. Há alguns dias, neste espaço, destacamos o caso intolerável de um menino de 11 anos que ligou para a polícia pedindo socorro porque sua família estava havia três dias sem comer (ver o editorial Vergonha brasileira, de 23/8). 

O episódio dessa criança é o lado humano de uma tragédia fartamente documentada em estatísticas, que deveriam orientar o governo na adoção de medidas urgentes para mitigar o problema. Tendo em vista, no entanto, que o presidente escolheu não levar em conta esses dados, a julgar por sua declaração, é improvável que o governo atue de maneira correta e célere. Norteado apenas por pesquisas eleitorais, o governo atropelou regras fiscais para distribuir dinheiro aos mais pobres, mas sem critérios claros nem preocupação específica com a insegurança alimentar. 

Esse é apenas o caso mais recente a comprovar os efeitos deletérios do apedeutismo militante do governo Bolsonaro. Recorde-se que, no auge da pandemia de covid-19, por exemplo, o presidente trocou vários ministros da Saúde até que encontrasse um que defendesse as teses estapafúrdias defendidas nas redes sociais bolsonaristas a respeito da alegada eficácia de “tratamentos precoces” e da suposta ineficácia das vacinas. 

Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro “acreditava sinceramente” no tal tratamento precoce e, por isso, não poderia ser qualificado como “charlatão”, como pretendia a CPI que investigou a atuação do governo na pandemia. Segundo a PGR, o tratamento foi “defendido por inúmeros profissionais da área médica” e, por isso, Bolsonaro não tinha como saber que era ineficaz. O que a PGR não disse é que Bolsonaro demitiu ministros da Saúde que lhe disseram que o tratamento era ineficaz – isto é, que Bolsonaro optou por estimular a população a acreditar que havia remédios eficazes contra a covid quando já tinha informações segundo as quais esses remédios não tinham efeito e que poderiam inclusive pôr em risco a saúde de quem os tomasse. 

Esse elogio à ignorância talvez seja a marca mais relevante desse governo. Em 2019, poucos meses depois de tomar posse, por exemplo, Bolsonaro disse que os números sobre o avanço do desmatamento divulgados pelo Inpe não eram “condizentes com a verdade” e demitiu o diretor do instituto, reconhecido internacionalmente por sua competência. 

Em 2020, quando a pandemia acelerava, o Ministério da Saúde, depois de críticas de Bolsonaro a respeito de supostos exageros na contabilidade de contaminados e mortos pelo coronavírus, decidiu alterar a divulgação dos números, tornando-os menos confiáveis ou inteiramente inúteis. Essa atitude levou vários veículos de imprensa, entre os quais este jornal, a se juntar em um consórcio cujo objetivo era coletar esses dados diretamente dos Estados. 

Em 2021, depois da divulgação de números ruins sobre o emprego, o presidente Bolsonaro, em vez de admitir o problema e propor soluções, preferiu desacreditar o IBGE, que produziu a informação. Para Bolsonaro, o número do desemprego aumentou “por causa da metodologia” do instituto. 

Os exemplos são muitos e indicam um padrão: Bolsonaro não gosta da realidade quando esta contraria seus devaneios ou prejudica seus interesses. Nenhum governo toma decisões corretas quando é dominado pela fabulação.

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