"O Brasil diante da crise de segurança global", artigo de José Serra

Prioridade de nossa diplomacia não deve ser equilibrar-se entre condenação da guerra na ONU e o apoio ao agressor no Planalto

O senador José Serra (PSDB-SP)

 O Estado de S.Paulo 

A invasão militar da Ucrânia pela Rússia é mais do que uma guerra de anexação. Ela abre uma crise no equilíbrio da segurança global e acrescenta nova dimensão à tríplice crise política, econômica e sanitária que atravessamos. Afeta nosso processo sucessório, põe em risco o comércio exterior, cria insegurança no mercado financeiro e no investimento estrangeiro e agrava o isolamento provocado pela má condução de nossa política externa e pela execução pífia de nossa diplomacia. 

Os impactos econômicos são os que mais têm se destacado e os que recebem tratamento mais inadequado do governo. O pretexto de nossa dependência em potássio, depois de ser usado para legitimar a visita presidencial à Rússia, agora justifica o controverso garimpo em terras indígenas e a grilagem. A previsível escassez de vários tipos de insumo deveria ser enfrentada com boas políticas de comércio exterior e de incentivo aos setores produtivos domésticos. E com uma diplomacia proativa. 

É surpreendente que a alta do preço do petróleo seja usada como pretexto para subsídios e isenções emergenciais, como se afetasse somente o óleo que importamos, e não aquele que exportamos – sendo quase a metade para a China. Ao todo, no ano passado, exportamos um volume de cerca de 70 milhões de toneladas (o que inclui óleo bruto e minerais betuminosos), resultando numa receita superior a US$ 30,5 bilhões, com o barril a US$ 80. 

Por que a China iria preferir depender do óleo russo, apesar de todos os atuais empecilhos à sua circulação, invertendo a atual dependência de Putin com relação ao apoio chinês? Para que a China iria preterir um fornecedor confiável, como tem sido o Brasil? 

Precisamos de uma política externa inteiramente voltada para nossos interesses vitais, sem a qual nossa diplomacia se torna um passivo a mais no enfrentamento desta crise criada pelas alucinações de déspota imperial de Putin. Sua aventureira ostentação de força está notoriamente desatrelada de seus recursos reais de poder militar, econômico e de credibilidade. É surpreendente que os dois lados de nossa polarização eleitoral se inspirem em Putin, sem de longe cogitar dos reflexos indeléveis, domésticos e externos, dessa leniência com o déspota russo. 

Os reflexos externos são os que precisam ser encarados com maior urgência. Alguns deles têm-se manifestado desde a primeira hora do atual mandato presidencial, quando o novo governo rompeu unilateralmente todas as parcerias internacionais que apoiavam financeiramente nossas ações de proteção ambiental. E só se agravaram com um assumido desmonte progressivo das ações de combate ao desmatamento e às queimadas. 

Nunca se viu tamanho desafio à opinião internacional e aos nossos governos parceiros, desde que o ministro de Minas e Energia da ditadura, Shigeaki Ueki, declarou ao mundo que nós queríamos mais, e não menos poluição, para melhor desenvolver nossa indústria. Agora, o anúncio deslavado de que a crise internacional é uma “oportunidade” benéfica para abrir as porteiras, com legalização do garimpo, da grilagem e tentativa de destinação inconstitucional das terras indígenas, longe de nos proteger dos efeitos comerciais e financeiros das sanções contra Putin, aumentará nossa vulnerabilidade e o isolamento que já sofremos. 

Diante deste quadro, a reversão de nossa imagem de Estado pária, conivente com transgressores de nossas próprias leis e de nossos compromissos com a ordem internacional, é uma condição necessária para a recuperação de nossa credibilidade internacional. Sem ela, não poderemos superar nossa vulnerabilidade a boicotes e sanções nem contar com os recursos do investimento estrangeiro que tornam possível viabilizar a exploração sustentável de nossos recursos naturais. 

Para tanto, o foco prioritário de nossa diplomacia deve ser, hoje, a missão de reerguer nossa imagem externa, e não a de se equilibrar entre uma ambígua condenação da guerra na ONU e um expresso apoio ao agressor no Planalto. 

A volta do Brasil para o Conselho de Segurança da ONU é uma oportunidade irrecusável para uma contribuição relevante no debate sobre as negociações de paz. Os grandes think tanks ocidentais, dedicados à inteligência e à segurança internacional, começam a se dar conta de que o impasse na discussão de um cessar-fogo e de futuras negociações de paz decorre de um equívoco na definição das partes relevantes. A Ucrânia é apenas o teatro de batalha de uma guerra da Rússia contra os EUA (ou contra o Ocidente). 

Portanto, é a Biden e a Putin que cabe negociar o que apenas ambos têm a ceder mutuamente para cessar as hostilidades, isto é, as tropas russas dentro da Ucrânia e as sanções econômicas impostas pelo Ocidente. Trata-se, claramente, de trocar recuos crescentes das forças russas contra afrouxamentos dosados das sanções, o que a diplomacia de ambos os lados provavelmente já colocou no papel. 

É esta a mensagem que o Brasil tem a levar ao Conselho de Segurança da ONU e à opinião pública internacional: as partes relevantes têm de dialogar. 

Sem diplomacia proativa, nossa credibilidade externa continuará em queda livre. 

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