'O futuro é agora', artigo de José Serra

Sistema eleitoral está no topo da lista de problemas perenes de nossa democracia,exigindo enfrentamento imediato




O Estado de S.Paulo

O Natal é depois de amanhã e o ano novo está próximo. Muitos aproveitam para um retrospecto ou para alinhar propósitos. Prefiro falar do futuro, um grande desafio, já que em nosso país nada é hoje previsível nem garantido, e no próximo ano passaremos por uma troca geral de poderes no Executivo e no Legislativo.

Tendo de enfrentar em nosso dia a dia uma sucessão de impasses, é impossível planejar bem o amanhã quando não se sabe como terminará o dia, seja do ponto de vista sanitário, de segurança jurídica ou de segurança econômica. E isto mesmo sobre questões consensuais, como a urgência de adotar um programa de renda básica ou de aumentar a qualidade, a eficiência e a honestidade do serviço público.

Incerteza sobre o futuro não justifica inação. Temos um conjunto de problemas permanentes que, enquanto não forem reconhecidos e bem debatidos, jamais serão enfrentados, negociados e compactuados. O contexto de uma campanha presidencial pode ser ocasião para essa reflexão que, infelizmente, não está sendo encarada pelas candidaturas já anunciadas.

Tenho salientado, neste espaço, a natureza multidimensional da crise que nos atinge – e que o povo brasileiro está enfrentando com coragem – diante da omissão de parte relevante de nossas instituições. O cerne da crise é de natureza política e a ela se sobrepõe uma crise de descontrole da política econômica, agravada pelos efeitos da pandemia de covid-19.

Os efeitos imediatos e a evolução da pandemia teriam sido mitigados, com alcance muito mais decisivo, se o combate à sua disseminação não fosse transformado em anátema e até mesmo demonizado pelo governo. O equilíbrio fiscal e a retomada do crescimento, herdados do governo Temer, não teriam sido tão negativamente afetados pela restrição forçada das atividades produtivas, se a conduta da política econômica não fosse tão equivocada.

Sem uma drástica retomada de rumo pelo governo, continuaremos a enfrentar inflação alta, juros elevados, endividamento sem controle, retrocesso do investimento, cujo somatório redunda em castigar o povo brasileiro, especialmente os setores mais vulneráveis. Sem uma reviravolta na interferência presidencial sobre o combate à pandemia que, ao fim e ao cabo, redunda em abrir as portas para a invasão de novas variantes de alto risco da covid-19, não reverteremos seus impactos negativos ascendentes sobre a atividade econômica e sobre as defesas imunológicas de cada um dos brasileiros.

Está, em primeiro lugar, nas mãos do governo federal voltar à política econômica para reorientá-la no rumo da estabilidade, da recuperação da confiança e do investimento. E isto não é viável, já que nossas instituições fundamentais têm-se orientado por agendas divergentes, e muitas vezes incompatíveis, que acabam se anulando reciprocamente.

Há quem aponte, como causa da crise política, um conflito de interesses de tal modo grave que se tornou impossível adotar as reformas consideradas essenciais, como a simplificação e a maior eficiência do regime tributário, a modernização dos serviços públicos ou a limitação ao estatismo.

Ao contrário, nosso Congresso tem aprovado um número alto de projetos de lei. As emendas constitucionais tornaram-se quase corriqueiras e efetuadas em poucos dias. Executivo e Legislativo nem sempre têm tido dificuldade em aprovar legislação apoiada pelo governo, por sua base parlamentar e pela oposição. Mas, como regra, poucas vezes coincidem com os interesses e necessidades vitais dos cidadãos.

Isto se tem manifestado em profunda insatisfação popular e em desconfiança do cidadão com respeito a sua representação política.

Já que uma democracia representativa se baseia no princípio de que a legitimidade das decisões de interesse coletivo devem ser tomadas por representantes eleitos pelos cidadãos, e refletir sua vontade, é necessário que algo de muito errado esteja ocorrendo na maneira como os representantes são escolhidos pelo eleitor. Simplesmente, o eleitor não sabe nem pode saber para quem vai seu voto, e o eleito não sabe bem de onde vêm o seus.

O sistema eleitoral – de voto proporcional em lista partidária aberta – constrói um muro intransponível entre o eleitor e seu representante, já que, segundo estimativas recentes, mais de 75% dos mandatários dependem dos votos de um número indeterminado de candidatos para se eleger. Em termos práticos, o cidadão não sabe a quem recorrer e seus representantes sentem-se livres para representar os interesses que bem lhes aprouver.

Se aceitarmos a premissa de que, com políticas governamentais adequadas nas dimensões econômica, sanitária e social, o impacto da pandemia sobre o sistema produtivo não teria fugido do controle, devemos convir que o sistema eleitoral está no topo da lista de problemas permanentes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato. Temos, portanto, razões para demandar dos candidatos ao nosso voto uma definição clara a respeito do seu compromisso com a necessidade de reabrir o debate sobre representação proporcional ou majoritária.

Porque o futuro não espera.

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