Prevent Senior repete práticas nazistas e serve de alerta para o país

Sob Bolsonaro, é bom lembrar que médicos ajudaram mas também combateram horror de Hitler



Michel Gherman* e Natalia Pasternak** - Folha.com

As notícias que vieram a público dando conta de conduta antiética da companhia de seguros Prevent Senior durante a pandemia levaram a comparações com os experimentos pseudocientíficos realizados pela Alemanha nazista com prisioneiros de campos de concentração.

É óbvio que o nazismo foi muito mais perverso nos experimentos que foram feitos. Muita gente acha um exagero comparar com a Prevent Senior. Mas, mesmo que os números e o nível de perversidade possam parecer diferentes, a ideologia que há por trás é tão funcionalmente perversa quanto.

Por exemplo, no que diz respeito a quem decide quem são as pessoas descartáveis e quem são as pessoas que devem viver —caberia ao dono do hospital e a própria estrutura da empresa esta escolha.

O Museu do Holocausto, de Curitiba, compilou um retrato histórico das atrocidades nazistas neste âmbito: “Médicos e cientistas ligados ao regime nazista não se furtavam a realizar os mais absurdos experimentos pseudocientíficos com internos de campos de concentração e de extermínio, cujas vidas eram vistas como descartáveis. Isso foi feito à profusão”.

Estes experimentos se davam em três categorias, segundo o documento.

“A primeira tinha o objetivo de propiciar a sobrevivência de soldados alemães —o que levou a simulações de condições extremas de batalha para determinar reações à altitude, à baixa pressão, ao congelamento e até métodos de transformação de água do mar em potável. A segunda, também voltada aos militares, tinha o propósito de desenvolver medicamentos, assim como métodos de tratamento para ferimentos e enfermidades. Cobaias intencionalmente infectadas eram utilizadas para testar agentes imunizantes e soros (incluindo gases tóxicos) contra malária, tifo e febre tifoide, dentre outros. Já a terceira categoria visava aprofundar as premissas ideológicas do nazismo, na tentativa de confirmar a pretensa inferioridade racial de judeus e de ciganos — incluindo métodos de esterilização em massa.Ainda há de se mencionar a ativa participação de grande número de profissionais de saúde no programa Aktion T4, que assassinou milhares de pessoas com deficiências ou com distúrbios mentais.”

O contexto brasileiro é outro, mas os princípios e a falta de respeito pela vida humana são iguais.

Apesar de vir à tona agora de maneira tão escandalosa por causa da CPI, o caso Prevent Senior não é recente. Ele começa em abril de 2020 quando um estudo, que nem se pode chamar de estudo, foi propagandeado como uma revolução no tratamento da Covid-19 no Brasil e no mundo.

Havia problemas éticos neste estudo: metade dos participantes não tinha ciência nem dado anuência para participar dele. E a metodologia empregada era duvidosa. Naquela altura, a preocupação era disseminar o uso do kit Covid por uma questão de marketing e de apoio à ideologia política do governo Bolsonaro.

Depois viria a orientação direta para que os médicos prescrevessem o uso dos medicamentos no tratamento da doença, uma vez mais sem consentimento dos pacientes, e a omissão da causa correta dos óbitos nos hospitais da instituição.

O que há de semelhança com a prática nazista? A não informação, a ocultação de motivos, a não anuência dos voluntários ou dos pacientes que serviram de cobaias.

A diferença é que os internos dos campos de concentração não tinham escolha se queriam participar dos experimentos ou não. No caso da Prevent Senior ninguém era prisioneiro, mas também não ficou sabendo do que estava acontecendo.

Cabe lembrar que não há práticas nazistas sem um processo bem-sucedido de desumanização.

Manaus dialogou com essa perspectiva. De alguma maneira, uma cidade inteira, uma população inteira passou por experimentos. É o princípio de que “velhos vão morrer de qualquer jeito”. Prática típica da eugenia, que deve ser entendida a partir de Nuremberg.

Em 1946, entre os diversos julgamentos de criminosos nazistas ocorridos na cidade alemã, esteve o que ficou conhecido como o “processo contra os médicos”.

A partir dos crimes hediondos revelados neste processo, surgiu a necessidade de se estabelecerem diretrizes éticas em pesquisas com seres humanos, e em 1947 foi elaborado o “Código de Nuremberg”, que serviu de base para a adoção, em 1964, da “Declaração de Helsinque” pela Associação Médica Mundial.

Como princípio fundamental desses documentos está a obrigação do consentimento livre e esclarecido dos participantes, ou seja, ninguém pode ser submetido a um experimento sem sua autorização baseada em informações suficientes para a tomada livre e consciente da decisão; normas de segurança devem assegurar a vida dos participantes em primeiro lugar; a busca por resultados científicos não deve jamais se sobrepor a isso.

O que é relevante para a memória de Holocausto neste episódio da Prevent Senior tem a ver especificamente com o código de Nuremberg.

O Holocausto é colocado como um divisor de águas no século 20 por vários motivos e um deles é que se chegou à conclusão de que é necessário se colocar limites bioéticos na prática médica e científica. Este é um legado importante, pois até meados dos anos 1940 a falta de parâmetros para realizar experimentos científicos e atendimentos médicos era corrente.

O que chama muito a atenção no caso Prevent Senior é a naturalidade com que tudo foi feito, a quantidade de pessoas envolvidas, a participação do governo federal. E chama mais atenção ainda a não participação do Conselho Federal de Medicina, que até agora está mudo e calado diante dessas atrocidades, o que mostra extrema politização.

Talvez por medo, ou por não ter a quem recorrer, o fato é que os médicos da seguradora demoraram muito para reagir —e foram poucos os que reagiram. As condições de fato são acirradas. Fica difícil reagir, numa dimensão corporativa, quando há uma minoria fanatizada organizada e no comando.

E aqui, o caso Prevent Senior é fundamental para entender a ponta de um iceberg, que é a atitude absolutamente ideologizada.

No Brasil, a partir de 2016 ou 2017, percebe-se um deslocamento ideológico de setores importantes dos médicos brasileiros. O ataque aos médicos cubanos; discursos ultraconservadores; tomada de conselhos regionais; tomada do conselho federal; um discurso higienisista do médico; a dimensão de ataque às práticas de aborto.

Enquanto a extrema direita não eleita estava atacando os professores de história e geografia, o que não se percebia é que, no horizonte, ela estava se preparando para atacar a prática médica, junto com a cumplicidade de alguns desses médicos.

Médicos sempre tiveram um protagonismo importante nos genocídios, e nas duas frentes. Se eles foram importantes no regime nazista, foram fundamentais para combatê-lo.

Houve Josef Mengele e todo um agrupamento de nazistas cobertos dessa ideologia macabra e perversa, que se sentiam extremamente confortáveis ao fazer experimentos com humanos envolvendo sofrimento e dor.

Mas é bom também lembrar que os grandes heróis do combate ao nazismo foram os médicos, que primeiramente denunciaram as atrocidades para as igrejas.

Portanto, se entendemos que estamos diante de um governo com práticas nazistas, entendemos que é preciso mobilizar os médicos.

O nazismo não é um fenômeno, uma tempestade de areia que chega do nada. Não é um terremoto que chega sem que a gente perceba. Não é um castigo divino que aparece de repente. O nazismo é produzido por homens e mulheres vinculados por perspectivas que os levam a agir dessa forma. Ou seja, não são monstros. As práticas nazistas não suspendem o cotidiano; elas se adaptam ao cotidiano. Isso é importante de entender.

O início desse caminho parece de flores, bonito; fala-se de família e valores. Mas o final desse caminho é Auschwitz. Falar sobre o Holocausto é usar o passado para falar sobre o presente e o futuro.

Não fazer essa comparação agora, entre o governo brasileiro, a Prevent Senior, e o nazismo, seria perder a oportunidade de impedir o final do caminho. É melhor não deixarmos para fazer essa inevitável comparação quando já for tarde demais. Quando mulheres, negros, a comunidade LGBTQIA+ e todas as minorias já tiverem perdido seus direitos.

*Michel Gherman - Professor-coordenador do Núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ e assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel (IBI)

**Natalia Pasternak - Microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro 'Contra a Realidade', da ed.Papirus. É professora visitante em Columbia University e participa do Conselho Consultivo do Instituto Brasil-Israel

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