Para não esquecer

Meio milhão de mortos por Covid no Brasil, fracasso a ser inscrito na história


Folha de S.Paulo

A admirável capacidade do ser humano de se adaptar à adversidade talvez ajude a explicar o mecanismo psicológico da resignação diante do massacre promovido pela Covid-19 no Brasil.

Múltiplos das cifras de óbitos que no início da pandemia despertavam alarme agora passam como rotina.

Trezentos mortos, quinhentos mortos, mil mortos, 2.000 mortos, até 4.000 mortos —todos os dias. Já se acumula meio milhão de vidas abreviadas por uma doença cuja incidência pode ser controlada.

Quando o novo coronavírus foi identificado como causa da enfermidade, em janeiro de 2020, não estava escrito nas estrelas que quase 25 de cada 1.000 brasileiros desapareceriam em 18 meses. Tampouco se gravava em pedra que a nossa jovem sociedade padeceria mais que as de nações envelhecidas da Ásia e da Europa.

Meio milhão de mortos constitui o resultado de um fracasso histórico —e disso jamais deveríamos nos esquecer. A civilização, afinal, também é o esforço incômodo do aprendizado, é a luta da memória da dor contra as tendências acomodatícias da anestesia.

O mal-estar de investigar o que terá dado errado no Brasil da pandemia remeterá às causas do desenvolvimento pela metade e desigual do país. A impaciência, a imprevidência, a ignorância, a indisciplina, a misantropia e o descomedimento surgirão conectados às muitas décadas de desídia com o cultivo das melhores instituições que a humanidade já inventou.

Decerto é difícil exigir de contingentes enormes o respeito a cautelas sanitárias se as redes de esgoto —tecnologia barata há muito tempo dominada— mal alcançam metade dos habitantes. Ou demandar distanciamento na realidade aglutinada dos barracos e das favelas.

Como cobrar das crianças aglomeradas, de repente privadas da escola, que imitem os filhos da elite e estudem pela internet sem condições alimentares e de infraestrutura mínimas? O que dizer à massa de trabalhadores com baixa instrução lançada à informalidade: fiquem em home office?

A qualidade da resposta governamental também reflete o desajuste crônico. Dois destrambelhados foram alçados à Presidência, um nos Estados Unidos, outro no Brasil. Lá órgãos técnicos e burocráticos federais com capacidade e autonomia atuaram a despeito das peripécias do mandatário.

Aqui, a coordenação federal pôde ser dinamitada com simples trocas de ministros da Saúde, a depender dos humores do chefe do Executivo. O Brasil lutou durante anos para estabelecer uma autoridade autônoma no controle da moeda, mas deixou de lado essa preocupação quando se trata de saúde, educação, ciência e tecnologia. Falhou e paga agora por isso.

Entidades com tradição no combate a doenças infecciosas, como Butantan e Fiocruz, ficaram à mercê dos centros de vanguarda biotecnológica e suprimento industrial.

Uma nova fábrica, como a projetada pela fundação sediada no Rio, vai demorar mais de ano para sair do papel, enquanto a escala da produção de vacinas se multiplica nos EUA, na China e na Europa.

Não se trata de falta de recursos financeiros. O Brasil tem um nível suficiente de renda para ter podido multiplicar por oito o déficit federal em 2020 na tentativa de socorrer os segmentos em apuros.

Haveria dinheiro de sobra para adotar estratégias eficazes de controle da doença, como testagem e monitoramento estrito, e para antecipar e imprimir maior velocidade à vacinação. Com a mesma verba, o programa de auxílio à renda da população vulnerável poderia ter sido bem mais efetivo e estável, em vez de ter ficado sujeito a palpites e solavancos.

Faltou o que não se improvisa nem se adquire facilmente em tempos de crise: inteligência, mecanismos e capacidade para coordenar uma resposta coletiva e tempestiva à altura do desafio gigantesco.

As lições para não esquecer dessa trágica marca de 500 mil mortos recomendam instruir compulsivamente as crianças e os jovens; assegurar o consumo básico dos vulneráveis; investir em saneamento e na infraestrutura que afeta diretamente a vida da maioria dos brasileiros; adensar as instituições para que possam responder aos desafios urgentes e preservar as políticas de Estado que melhoram o futuro.

Ter eleito o pior presidente da República desde a redemocratização, que infestou a Esplanada com assessores de nível pré-ginasiano, contribuiu decisivamente para o desfecho catastrófico.

Parte desse dolorido aprendizado há de recair sobre os brasileiros que vão às urnas em outubro do ano que vem. Em regimes democráticos, as escolhas eleitorais têm consequências que recaem sobre o conjunto da população, em especial sobre a parcela mais pobre.

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