Depoimento de ‘capitã cloroquina’ à CPI reforça tese de omissão de Bolsonaro na crise do Amazonas

Relator da CPI, Renan vê inconsistências em depoimento de Mayra sobre cloroquina, isolamento social e colapso da saúde

Conhecida como ‘capitã cloroquina’, Mayra Pinheiro presta depoimento na CPI da Covid; ela é secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde 

Lauriberto Pompeu e André Shalders - O Estado de S.Paulo

Em depoimento de seis horas e meia à CPI da Covid, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, reforçou a suspeita da cúpula da comissão de que houve omissão do governo Bolsonaro na crise de oxigênio no Amazonas. Informações prestadas pela médica aos senadores indicaram que o Ministério da Saúde soube com antecedência da crise de oxigênio no Estado e não agiu em tempo hábil para combater o colapso no sistema de saúde.

Mayra contradisse o ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, sobre o momento em que a pasta foi informada do problema no abastecimento de oxigênio hospitalar em Manaus, no início do ano. Pazuello afirmou que foi avisado sobre a crise no dia 10 de janeiro. Ela, por sua vez, declarou que conversou sobre o assunto com o general em 8 de janeiro.

Conhecida como “capitã cloroquina” por sua defesa veemente do medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento de covid-19, Mayra disse aos senadores que não teve informações sobre problemas quando esteve em Manaus. A visita ocorreu entre os dias 3 a 5 de janeiro, às vésperas do colapso na rede hospitalar, quando pacientes infectados pelo novo coronavírus morreram por asfixia após o esgotamento dos estoques de oxigênio. “Não houve uma percepção de que faltaria”, disse Mayra.

A primeira vez que o Ministério da Saúde soube do ocorrido, segundo Mayra, foi no dia 7 de janeiro. “Pelo que tenho de provas, nós tivemos uma comunicação por parte da secretaria estadual, que transferiu para o ministro um e-mail da White Martins dando conta de que haveria um problema de abastecimento, segundo eles mencionado como um problema na rede”, afirmou a médica aos senadores.

O e-mail da White Martins, obtido pelo Estadão, informa à Secretaria de Saúde do Amazonas que, com o agravamento da crise, eram necessários “novos esforços adicionais” para superar o problema.

“O imprevisto aumento da demanda ocorrido nos últimos dias agravou consideravelmente a situação de forma abrupta, superando em muito o volume contratado pela Secretaria junto à White Martins, fazendo com que sejam necessários novos esforços adicionais para que a totalidade das necessidades sejam cumpridas”, diz e-mail da multinacional no dia 7 de janeiro. A mensagem foi encaminhada no mesmo dia ao Ministério da Saúde.

A versão contada por Mayra contradiz o que disse Pazuello. Quando depôs à CPI na semana passada, inicialmente o ex-ministro afirmou ter sido comunicado sobre o colapso em Manaus apenas no dia 10, três dias depois do e-mail.

Confrontado com documento apresentado pelo ex-secretário-executivo da Saúde Élcio Franco, que relatou a mensagem da White Martins, o general se corrigiu e disse que só soube “de forma clara” da situação no dia 10. “Eu tomei conhecimento de riscos em Manaus no dia 10 à noite, numa reunião com o governador (Wilson Lima) e o secretário de Saúde (Marcellus Campêlo), quando eles me passaram as suas preocupações (e disseram) que estavam com problema logístico sério com a empresa White Martins”, declarou Pazuello à CPI, na semana passada.

Questionada sobre a divergência de versões, Mayra reafirmou que o ex-ministro teve conhecimento do desabastecimento do oxigênio em Manaus em 8 de janeiro. Alegou, porém, que a situação era “extraordinária” e, portanto, seria impossível fazer previsão sobre a falta do produto.

“Em Manaus, vivíamos uma situação extraordinária de caos, era impossível fazer previsão de quanto se usaria a mais. O uso passou de 30 mil metros cúbicos para 80 mil metros cúbicos”, relatou a secretária, que disse não ter atuado na força-tarefa de obtenção de oxigênio. “Eu não estava mais em Manaus”.

À tarde, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) resgatou a declaração de Mayra de que não havia como antecipar a crise de oxigênio e fez cobranças à secretária e ao governo federal. “As unidades básicas de saúde estavam funcionando de segunda à sexta-feira e fechando às 5 horas da tarde, enquanto o povo estava se acumulando e, lamentavelmente, desesperado, morrendo na porta dos hospitais, que estavam sem leito e sem estrutura. E hoje pela manhã a senhora disse que não conseguiu prever que ia faltar oxigênio diante desse quadro? Como? Como que uma técnica com o nível de formação que a senhora tem, com toda a secretaria e com toda a assessoria do ministério presente na cidade de Manaus, constata esse quadro e não identifica que nós íamos colapsar por falta de oxigênio? Como?”, protestou Braga.

Além da informação prestada pela secretária do Ministério da Saúde, outro indício de falha do governo federal na condução do colapso no Amazonas aparece na recusa do presidente Jair Bolsonaro em intervir na crise de oxigênio naquele Estado.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid, mobilizou a equipe técnica para produzir um levantamento de quantas declarações inverídicas foram dadas por Mayra. Uma versão preliminar do documento listou 11 contradições.

A tabela indica inconsistências nas declarações da médica sobre a aplicação de cloroquina contra a covid, a criação do aplicativo Tratecov – que estimula o tratamento precoce, prática não recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – e também sobre isolamento social.

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