'O 11 de Setembro da democracia', artigo de Floriano Pesaro

Floriano Pesaro

Estadão

As cenas da invasão das dependências do Congresso estadunidense protagonizada por apoiadores extremistas do Presidente Donald Trump já garantiram seus lugares nos livros de História de todo o mundo. As ameaças às democracias liberais que já vínhamos detectando em países emergentes – seja de forma explícita, como golpes militares, ou por meio de manobras institucionais, bem delineadas no livro “Como Morrem as Democracias” – concretizaram-se, agora, em solo americano, no berço da democracia liberal, um ataque real, concreto, sem precedentes ao processo democrático. Se fossemos nós sociólogos, estudiosos, ou ainda cidadãos interessados em política de qualquer outra parte do mundo, estaríamos ansiosos com os desdobramentos a vir dessa situação inédita. Contudo, como brasileiros atentos ao processo político e democrático, pode ser que estejamos, além de ansiosos, provavelmente estejamos aflitos e – por que não? – preocupados.

É verdade que nesse início de 2021 com a pandemia do novo coronavírus ensaiando superar os macabros números alcançados no ano passado e sem perspectivas quanto a um plano nacional de imunização, parece deslocado qualquer debate sobre democracia e eleições. Além de domar a doença, esse ano guarda, ao menos, outros três grandes desafios aos brasileiros: retomar o controle fiscal, domar a crise socioeconômica que se avizinha com a perda da renda e do emprego e, por fim, impedir o avanço de uma política de desregulamentação ambiental que deve causar rusgas ainda mais graves para nossa imagem no comércio internacional. Tudo isso sob os auspícios de um governo que parece ver o país “quebrado” e não saber bem, qual rumo dar a esse grande, e complexa, embarcação chamada Brasil.

Essa preocupação é legítima e advém dos inúmeros casos de tentações autoritárias que temos assistidos desde 2018 sob forte chuva de novas de repúdios das maiores autoridades nacionais.

O enredo brasileiro, infelizmente sobre um mal auspício, é bastante similar àquele que levou os EUA a assistirem senadores e deputados acuados nos porões do Capitólio.

Temos um presidente que questiona regularmente o sistema eleitoral sem apresentar uma única prova, ou algum fato que se aproxime disso. Nesse ponto, note que lá a votação se dá em cédulas e aqui por meio de urnas eletrônicas, mas a estratégia de desacreditar o pilar fundamental da democracia é o mesmo.

Temos por aqui, também, a arregimentação e a formação de um grupo político que, apesar de diferentes matizes, se formou numa base bastante extremista – impulsionada pelas redes sociais – onde cabe pouca opinião fora dos dizeres do capitão. Fenômeno já conhecido dos sociólogos e cientistas políticos no desenvolvimento do fascismo na Europa.

Também padecemos, talvez mais gravemente do que os estadunidenses, de um descrédito com a política que atingiu seu ápice com os protestos de 2013 e que, até agora, continua sendo negligenciado pelos políticos e pelos partidos tradicionais.

Não é exagero se ao dormirmos nesses próximos dois anos, tenhamos pesadelos com uma reedição nacional das cenas terroristas no Congresso americano. Temos uma vantagem, contudo: ainda há tempo.

É preciso radicalizar a democracia e tratar extremistas que atentam contra o sistema democrático como o são.

Não podemos aceitar falsas alegações sobre o sistema eleitoral sem que sejam apresentadas provas.

Politicamente, uma das saídas é a construção de um centro democrático que preserve as regras do jogo institucional. A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados em fevereiro nos dará uma demonstração da validade desse caminho.

O processo político e social é um caldo que não se forma da noite para o dia e o nosso está em processo de fermentação.

*Floriano Pesaro, sociólogo

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