A política da morte de Bolsonaro

O sangue que suja as mãos do presidente e seu grupo também se estende a seus apoiadores



Fabricio Pereira da Silva e Camila De Mario* - Folha.com

Se um elemento fundamental da modernidade tardia e do Estado contemporâneo é o direito de matar, Jair Bolsonaro leva essa característica à sua expressão máxima.

A política de Bolsonaro é baseada na morte, na eliminação física dos cidadãos de seu país, e particularmente de seus “inimigos”: aqueles que o amedrontam por serem diferentes de seus padrões morais. Bolsonaro é uma expressão exemplar da política baseada na morte, a necropolítica.

Antes, um esclarecimento. A necropolítica ou necropoder (política da morte, poder de morte) é um conceito desenvolvido por Achille Mbembe, filósofo político camaronês.

Aqui a ideia de biopoder de Michel Foucault é o ponto de partida. Se biopoder é aquela parte da vida sobre a qual o poder tomou o controle, Mbembe vai além e afirma que para entender a modernidade e o Estado contemporâneo essa ideia não basta.

Mais que deixar viver ou expor à morte, Mbembe destaca o direito de matar. A política é o trabalho da morte e a soberania é o direito de matar.

Mbembe relaciona a soberania do Estado com a ideia de estado de exceção. As formas de soberania que lutam por autonomia não são a regra: o comum é a instrumentalização da existência humana, a destruição material de corpos humanos e populações. O estado de exceção e a relação de inimizade são a base normativa do direito de matar.

O poder procura inventar exceção, um inimigo. A percepção da existência do outro como um atentado contra minha vida, como ameaça mortal ou perigo absoluto, leva a entender sua eliminação como algo necessário para minha vida e segurança.

A necropolítica se exemplifica nos colonialismos, nas ocupações territoriais armadas, nas guerras contemporâneas, nas milícias, nos Estados parcialmente dissolvidos. Ela define como armas de fogo são desenvolvidas para a destruição máxima de pessoas e criação de “mundos de morte”, nos quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes dão um status de “mortos-vivos”.

Deve-se esclarecer que o Estado brasileiro sempre praticou o extermínio em massa de seus pobres, e que esses têm cor. Em todas as suas etapas, ele vem eliminando sua população negra e indígena (Mbembe percebe a ideia de raça como elemento básico da necropolítica, e a escravidão moderna como fundamental em seu desenvolvimento).

O que ocorreu durante a ditadura civil-militar, e agora sob Bolsonaro, é apenas a expansão da necropolítica para parcelas brancas da população. Quando a morte se aproxima dos brancos, denunciamos golpes e o avanço do autoritarismo. Mas a ausência de um Estado de direito sempre marcou as vidas e mortes dos pretos e índios do Brasil.

Deve-se mencionar também que toda a trajetória política de Bolsonaro foi baseada no ódio e na morte. É algo que sempre foi evidente, o que torna quem o apoiou nas eleições presidenciais de 2018 corresponsável pela violência emanada de seu poder.

O sangue que suja as mãos de Bolsonaro e seu grupo também se estende a seus apoiadores –sejam os pontuais, sejam os mais fiéis.

Bolsonaro deixou clara sua agenda de poder desde o início. Sempre se esforçou para estabelecer limites entre um “nós”, formado por patriotas e cidadãos de bem, e um “outro”, constituído por esquerdistas, comunistas, minorias, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, todos aqueles cujo discurso ele caracteriza como “coitadismo” e defesa do “politicamente correto”.

Os recados foram claros. Às minorias Bolsonaro avisou: “Que se adequem ou perecerão”. À esquerda prometeu a “ponta da praia” (alusão a uma base da Marinha da Restinga da Marambaia no Rio de Janeiro, usada durante a ditadura civil-militar para a execução de presos políticos). Aos cidadãos de bem garantiu que faria uma “limpeza nunca vista na história do Brasil”.

Prometeu a morte. Suas propostas de campanha consistiram na eliminação do inimigo e na destruição do Brasil atual, pois a única forma de construir algo novo é “libertando o Brasil da ideologia nefasta da esquerda”, como declarou em jantar para apoiadores logo após o início de seu mandato.

A destruição está em marcha, a promoção da morte também.

Sua necropolítica se manifesta no afrouxamento das leis de trânsito, como é o caso do fim das multas para quem não usar cintos de segurança e assentos para as crianças nos bancos traseiros dos carros, ou do fim dos radares móveis e ocultos. Está na facilitação da posse de arma e nos reiterados esforços para liberar o porte de armas.

Seu governo promove a morte ao desmontar a legislação de proteção ambiental, o que se faz evidente em sua omissão no combate ao desmatamento e às queimadas no Pantanal e na Amazônia.

Integra esse mesmo projeto o desmonte de políticas públicas, serviços e ações voltadas para a proteção de minorias sistematicamente assassinadas ou vítimas de diferentes formas de violência: indígenas, quilombolas, mulheres, homossexuais, pretos pobres, todos entregues à própria sorte.

Soma-se aqui a negação e o silenciamento perante o racismo, mecanismo central para a marcha da necropolítica.

A política da morte de Bolsonaro alcança sua plenitude na sua gestão da pandemia do coronavírus. Seus discursos e ações transitaram da negação da pandemia para a minimização dos sintomas da Covid-19 (que não passaria de uma “gripezinha”), para agora culminarem na adoção de uma retórica antivacina e no boicote à implantação de um plano nacional de vacinação.

Sua principal tática foi destacar o desemprego e a pobreza como efeitos deletérios de um “descabido pânico coletivo” e da “irresponsável” atuação de governadores e prefeitos provocada pelo medo da doença e da morte.

Esse é um ponto importante. Há um esforço em naturalizar a morte pela Covid-19, como se essa fosse inevitável –tal como a morte em si, destino de todos.

Decorre dessa naturalização dois entendimentos imediatos: (1) quem teme a doença é covarde; (2) quem age para combatê-la é inimigo do povo, inimigo do Brasil.

Trata-se de uma construção que adota a lógica da guerra, da polarização que opera de forma antidemocrática, servindo à necropolítica e alimentando a oposição entre “nós” e “eles” (que aos olhos de Bolsonaro não passam de “maricas” que querem fugir da realidade, afinal todos vamos morrer um dia).

No momento em que escrevemos este artigo, o Brasil vive uma nova onda da pandemia. Com média diária de casos e óbitos em ascensão, o país se aproxima da marca de 200 mil mortos, com mais de 7 milhões de casos de Covid-19 registrados.

Enquanto isso, Bolsonaro declara que não há pressa para a vacina, pois “os números têm mostrado que a pandemia está chegando ao fim”.

Com tudo isso, devemos frisar: Bolsonaro é responsável pela morte de milhares de brasileiros.

*Fabricio Pereira da Silva - Professor de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), tem pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile).

*Camila De Mario - Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes

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