Mais respeito à Constituição

País tem de sair da arapuca montada por Bolsonaro. Relação entre civis e militares não é mais nem menos delicada do que a relação entre civis com quaisquer outras instituições de Estado

Jair Bolsonaro

O Estado de S.Paulo

É espantoso o rumo que tomou o debate público sobre a relação entre as autoridades civis e militares no País. É como se o que está escrito na Constituição – que determina em português cristalino quais são os papéis de uns e de outros na República – tivesse virado letra morta. Eis mais um legado nocivo do presidente Jair Bolsonaro. Nos últimos quatro anos, o atual mandatário instrumentalizou politicamente as Forças Armadas em seu benefício pessoal, inclusive dando voz a uma interpretação extravagante do artigo 142 da Lei Maior, e tentou por diversas vezes minar o poder dos governadores sobre as Polícias Militares.

Toda essa celeuma criada em torno da nomeação do futuro ministro da Defesa é o exemplo mais recente desse debate totalmente desarrazoado que se instalou no País.

Desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999, a escolha do titular da pasta nunca despertou tanta atenção da sociedade nem tampouco gerou tanta apreensão como agora. É como se, a depender do nome escolhido pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, os militares fossem se insurgir ou permanecer leais ao seu futuro comandante em chefe.

Ora, no Estado Democrático de Direito, o poder militar (armado) submete-se ao poder civil (político). As Forças Armadas, portanto, não são atores institucionais com ingerência sobre atos próprios da vida civil nem muito menos sobre as prerrogativas constitucionais do presidente da República. Diálogo ou até mesmo negociação jamais devem ser confundidos com chantagens ou ameaças, veladas ou explícitas.

O Estadão apurou que, no dia 28 passado, Lula convidou José Múcio Monteiro, ex-ministro de Relações Institucionais (2007-2009) e ex-presidente do Tribunal de Contas da União (2019-2020), para assumir o comando da Defesa. Tido e havido como um hábil negociador, Múcio foi incumbido pelo presidente eleito de criar “um ambiente de diálogo” entre o futuro governo e a caserna.

Consta que a escolha de Lula teria desagradado aos dirigentes de partidos políticos aliados e aos parlamentares petistas, que pugnavam por outro nome à frente do Ministério da Defesa. Nos bastidores, os críticos de José Múcio Monteiro dizem que ele seria “o candidato do Forte Apache”, em referência ao quartel-general do Exército, como se isso fosse uma mácula por si só. De fato, Múcio é figura benquista no meio militar; e o momento tormentoso que o País atravessa impõe diálogo e temperança às autoridades constituídas.

Mas a questão fundamental é a seguinte: a rigor, o apreço ou a antipatia de lideranças civis ou militares em relação a José Múcio Monteiro – ou a qualquer outro ministro escolhido por Lula – são sentimentos absolutamente irrelevantes à luz da Constituição.

Cabe única e exclusivamente ao presidente da República, convém lembrar, “nomear e exonerar os ministros de Estado” e “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos” (artigo 84, incisos I e XIII, da Constituição, respectivamente).

Portanto, Lula da Silva pode estabelecer os critérios que julgar mais convenientes não apenas para nomear seus ministros, como também os comandantes das Forças Armadas. Esse poder deriva da legitimidade conferida aos mandatários pelas urnas. E todos devem respeitar a decisão do presidente eleito, seja qual for. É o que determina a Constituição.

Do mesmo modo, não tem qualquer cabimento discutir projetos que ampliem ou reduzam o poder de governadores de Estado sobre as Polícias Civil e Militar. A Constituição também é de uma clareza solar nessa matéria.

O País tem de se desvencilhar da arapuca montada por Bolsonaro. A relação entre autoridades políticas constituídas e as Forças Armadas não é mais ou menos delicada do que a relação com quaisquer outras instituições de Estado. Trata-se de uma relação pautada, antes de tudo, pelos termos da Constituição e pelo interesse público. Qualquer coisa fora disso serve a desejos de poder e veleidades, não ao Brasil.

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