"Lula prometeu pacificar o País", artigo de José Serra

Tentativas deliberadas de perpetuar a polarização, de atacar o candidato derrotado, são inconsequentes e arriscadas. E traem sua valiosa promessa

Senador José Serra (PSDB-SP)

O Estado de S. Paulo

Estamos a dois dias do Natal e a pouco mais de uma semana do ano-novo. O Natal traz esperança e exorta todos a exercerem a fraternidade. Mas a fraternidade exige a adesão deliberada de cada um e reflete as condições sociais e morais das nações. Entre essas condições, o ambiente político do País exerce papel preponderante, e essa é a razão do pessimismo que pode prevalecer na expectativa do próximo ano novo, por oposição ao otimismo que o Natal provoca.

O otimismo está no fato de que a democracia representativa, posta em risco nestas eleições, prevaleceu sobre todas as tentativas de violar o voto livre e secreto dos cidadãos. A natureza tem-nos favorecido e, graças à qualidade da inovação científica e tecnológica de nossa agricultura, desfrutamos de plenas condições de segurança alimentar. Nossa base industrial tem sofrido com os equívocos das políticas econômicas adotadas nas duas últimas décadas, mas as expectativas são de que o investimento no Brasil pode voltar a ser atraente se o futuro governo tomar as decisões necessárias para garantir sua credibilidade. Em que pese a insuficiência de nossa base tecnológica, em razão da falta de formação profissional pós-ensino médio, temos um corpo de profissionais com extensa experiência de gestão pública e privada, e com disposição para colaborar numa empreitada de reerguer o País.

Já os fundamentos do pessimismo estão em dois aspectos do ambiente político, que se sobrepõem. Um é o aguçamento da polarização, que anula qualquer expectativa de fraternidade entre duas metades do eleitorado, mobilizadas pelo medo, que decidiram seu voto seja por temer Bolsonaro, seja por desconfiar de Lula. Alguns fantasmas foram difundidos deliberadamente pelos dois lados, mas a maioria moderada tinha bastante experiência do governo de ambos para ter medo do que via.

Esse aguçamento provém, de um lado, da recusa do atual presidente a reconhecer a legitimidade da Constituição, que confere ao candidato eleito o direito e o dever de exercer o mandato presidencial. Recusa que se estende ao conjunto da Carta, uma vez que só reconhece um único artigo, o 142, que, a seu critério, lhe daria a prerrogativa de derrubar o governo legítimo. Sua omissão diante da ocorrência de atentados violentos, organizados para mostrar a disposição de seus organizadores para obstaculizar, senão impedir, a posse do presidente eleito, somada a manifestações presidenciais dúbias, convergem para sinalizar uma clara estratégia para manter, a qualquer preço, a polarização e a sobrevivência de sua liderança, hoje declinante.

O aguçamento também se alimenta da duplicidade quase doentia da persona pública de Lula, o candidato aberto a tudo e a todos, disposto a agasalhar toda a diversidade de ideais, todas as crenças e posições políticas, a perdoar os antigos adversários e honrar todas as heranças, benditas ou não. Estendeu a mão a todos e recebeu a mão estendida de todos, mesmo dos que, ainda que temendo Lula, foram convencidos a temer mais seu contendor.

Quando candidato, deixou claro que seu passado de glórias e feitos lhe propiciava prescindir de especialistas para planejar seu governo, de empresários para contribuir para o crescimento da economia e da ajuda de gestores públicos experientes que contribuíssem para ampliar a capacidade governativa de sua coalizão. Absteve-se – o que é grave – de abrir canais que pudessem trazer para sua campanha a considerável diversidade de ideais e interesses representada nos partidos e movimentos que o apoiaram. Ao contrário, todas as vezes em que foi cobrado a revelar seu programa, sua resposta era a mesma: “Eu sei o que fazer, eu já fiz, eu vou fazer”.

Sua vitória provocou alívio entre os que nele votaram, tanto os fiéis petistas quanto os desconfiados e até os céticos. Mas o presidente eleito manteve-se ausente do processo de transição por quase todo um mês, deixando uma equipe gigante, de quase mil membros, desprovida de orientação e de decisões vitais que Lula dizia ter em sua cabeça.

Quando veio a público, desencadeou um processo exageradamente precoce de erosão de seu indiscutível capital político, antes mesmo de assumir o governo. O mundo mudou, o Brasil mudou muito desde seu último mandato, e a economia mundial está sofrendo uma transformação extrema. Mas Lula não mudou. Pior: não percebeu a mudança.

Talvez isso se deva à sua necessidade de dividir o mundo, as pessoas e a política, numa dualidade simplificadora, o bem contra o mal, a verdade contra a mentira, os pobres contra os ricos, nós contra eles, os que cuidam do pobre contra os que ficam olhando a política fiscal. Nesse contexto, as tentativas deliberadas de perpetuar a polarização, de atacar com frequência o candidato derrotado, são inconsequentes e arriscadas. E traem sua promessa de pacificar o País.

A resiliência que o povo brasileiro tem mostrado para evitar a ameaça de golpe deve servir, neste momento de transição, para exigir de Lula o cumprimento de sua promessa de campanha mais valiosa: a de pacificar o País.

Comentários

  1. Milton Flavio22/12/22 20:03

    Como sempre Serra é claro, contundente e adequado na sua análise . Lula da transição tem pouco a ver com o Lula candidato e principalmente com o discurso da vitória..

    ResponderExcluir
  2. Muito equilibrado o artigo do Serra. O medo dos dois lados está sendo confirmado pela traição à Simone Tebet que, com 5% dos eleitores, deu apoio DECISIVOà vitória de Lula e merece um papel de destaque nesse governo, que já se esqueceu que poderia ser muito melhor com a Simone.

    ResponderExcluir

Postar um comentário